sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Café e Cigarros

Seus beijos tinham gosto
de café e cigarros
tudo que eu amo
ao me perder nos olhos claros
azuis serenos
profundos
perdidos
na noite de lua branca
na praça
na rua
no banco ao teu lado
os cachos dourados
a escapar por entre os dedos
uma vez, um medo
de me perder
e não me encontrar
fugir do tempo
e do lugar
até por fim
ir
se possível
voltar


Andressa Liz

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Juca esperança e a cabra do diabo

   Juca nasceu em uma pequena vila bem no meio do sertão. As rachaduras no chão eram as mesmas das paredes de sua casinha, que dividia com os cinco irmãos, pais e a velha tia. A comida era tão escassa quanto a água e o sol queimava sem piedade. Não sobrevivia gado, nem se cultivava folhas. Todos ali eram tão esquecidos pelo mundo que nem se podia imaginar o que haveria adiante da caatinga morta.
   Juca adorava a sua pequena cabra e fazia todo o esforço para alimentá-la. Era dela que tirava o sustento de toda a família e ajudava o resto da vila a sobreviver. Trocava o leite por feijão, arroz e farinha, com sorte conseguia semana ou outra uma ave magra pro jantar. No mais, ninguém da vila costumava comer todo dia, ou pagar por comida. Ele já havia salvado a vida de muita gente à beira da morte, tudo graças a sua pequena cabra e o queijo que se podia fazer do seu leite. Era pouco, mas o pouco que tinha era muito.
   Pra esquecer a fome, Juca se sentava nos finais de tarde debaixo da árvore retorcida na frente da casinha e escutava os causos que a velha tia contava com uma expressão pesarosa e enlouquecida. A tia de Juca era conhecida pelos outros na vila como velha louca, pois falava coisas tenebrosas e aparentemente sem sentido, havia rumores de que a velha era bruxa, mas Juca sabia que não passava de conversa fiada que batia de casa em casa na pequena vila. A tia era de fato meio dissimulada, mas Juca gostava de ouvir suas histórias e por vezes se questionava se aquilo não poderia ser real. As histórias de lobisomem, chupa-cabra e capeta não o assustavam nenhum pouco. A velha tia falava dos poderes mágicos da besta e Juca imaginava se poderia um dia saber se isso era real, pensava no inferno que a tia descrevia e imagina um lugar parecido com o sertão. Juca não mais rezava, pois nada nunca mudava, não se preocupava em ir pro inferno já que não conseguia pensar em um lugar pior do que o que estava. Ficava imaginando o que poderia fazer para que todo o sofrimento acabasse.
   Conforme os dias se passavam e o verão quente se aproximava a comida ia ficando mais escassa e a temperatura muito mais difícil de suportar. Uns morriam de exaustão, os corpos fracos de inanição. Juca ainda conseguia sustentar a família com a sua cabra que sobrevivia às dificuldades da vida sertaneja e quando podia ajudava os demais. Juca se sentia mal em ver os que tinham ainda menos do que ele sofrerem até a morte lenta chegar.
   Um dia lembrando das histórias que ouvira da tia, decidiu ir até a encruzilhada de madrugada. Esperando alguma criatura mágica aparecer e quem sabe ela sentiria tanta pena de sua história que resolveria ajudar. Ficou lá esperando, a noite quente, a lua grande no céu estrelado, nenhuma brisa e silêncio absoluto. Subitamente uma sombra negra surgiu na frente de Juca. O menino levou um susto, mas logo abriu um sorriso desdentado. A criatura ficou parada diante dele estranhando a reação contraditória do garoto.
- As pessoas não costumam sorrir ao me ver
- Eu sorri porque minha tia num é louca sinhô, ela tava certa quando disse que existia.
- Tu sabe quem eu sou, garoto?
O garoto observou a figura empalidecida, os olhos negros profundos e os chifres protuberantes na cabeça do homem envolto em escuridão.
- É o sinhô que vai ajudar nóis.
O homem riu.
- Ajudar, garoto? Eu não ajudo ninguém.
A esperança do rosto de Juca desapareceu, o olhar agora distante, consternado.
- Então o sinhô num pode fazer nada pra nóis né...
- Já rezou hoje menino? - perguntou o homem rindo ainda mais alto, os olhos enigmáticos.
- Não sinhô, eu já num rezo faz tempo. Antes eu rezava todo dia mas até hoje a gente nunca teve resposta. Se o sinhô lá de cima num pode ajudá nóis, pensei que o sinhô pudesse ajudá.
O homem abriu um sorriso grande
- Talvez eu possa fazer algo por ti
Juca abriu novamente o sorriso banguela. O homem continuou
- Mas tem um preço.
Juca fechou o sorriso, apreensivo
- Mas nóis num tem dinheiro nenhum, nóis num sabe muito sobre dinheiro, é coisa dos homi que aparece vez ou outra pra deixar um pouco de comida, numas carroça de metal grande que carrega mais ar que coisa pra ajudar nóis. Eles num divide o que tem com nóis e temos que se virá.
O homem continuou sorrindo, enigmático
- Eu não quero dinheiro, menino, dinheiro não me serve. Eis aqui minha proposta então. Tu abre mão do que for mais importante pra ti e eu te mostrarei o futuro.
   Abrir mão do que era mas importante para ele. Juca apenas conseguia pensar em sua cabra. Com as últimas esperanças reunidas, ainda que hesitante depositou sua confiança no homem, esperando que o futuro pudesse lhe mostrar alguma solução. O Menino correu rumo a casinha, desamarrou a cabra e a levou ao homem.
   O homem riu ainda mais alto e mostrou para Juca o que ele havia pagado para ver. Juca viu a vila vazia, crânios espalhados pelo chão, alguns poucos corpos se contorcendo, lutando contra os urubus esfomeados, tentando resistir à morte, outros ávidos para que ela chegasse logo. Juca esperançoso tinha acabado de receber um golpe do destino que destruiu toda a esperança que ainda restava. Quando o garoto voltou novamente para a encruzilhada disse indignado para a figura humana escura e com chifres
- Mas isso num é solução
- Eu nunca disse que fosse, garoto. Tu aceitou o acordo que eu tinha a oferecer e pagou para ver o futuro, eu te mostrei. Isso é tudo.
- Mas num é justo, eu dei pro sinhô tudo que eu tinha.
- Quando não tiver mais ninguém em quem confiar, ainda assim não confie no diabo.
   Uma risada precedeu seu sumiço, pairava um cheiro desagradável no ar. Juca não podia acreditar que vendera sua preciosa cabra por um preço tão barato. Tinha vendido sua única real esperança em troca de nada.
   Conforme os dias passavam, Juca viu a morte dos irmãos, dos pais e da velha tia. Sem ter o que comer todos na vila estavam morrendo, ainda mais rápido sem o leite da cabra que os sustentava. Juca não tinha mais o que fazer, padecia embaixo da velha árvore seca sem forças para se mexer. Imóvel, podia ver as feridas assustadoras do seu corpo e a fome que açoitava seu estômago. Delirava de sede sob o sol escaldante enquanto os urubus se agrupavam no céu esperando que sua hora chegasse. Juca também esperava, não pensava nem em céu, nem em inferno, apenas queria sair dali o mais rápido possível e se livrar da dor e do sofrimento.


Andressa Liz

referências:

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

A Vida Secreta da Solidão

   Vi a foto antiga do retrato e por pouco não reconheci a pessoa que ali estava, não fosse pelo sorriso e o olhar enigmático. A sordidez da imagem me trazia inquietude envolta na mais profunda melancolia. Já se passaram muitos anos da lembrança do seu rosto fronte à minha face. Avistei o envelope no fundo da gaveta onde encontrei a fotografia, hesitei em pegá-la, mas não resisti.
   Na carta estavam palavras carregadas com a mais cruel das angústias, a de saber que nada poderia ser feito para mudar a situação de uma forma efetiva. As palavras obviamente eram minhas, pois nunca as enviei. Uma lágrima furtiva pendia do meu rosto, forçando seu caminho pela minha face rumo ao chão. Eu não poderia mais voltar ao passado para fazer tudo diferente, e mesmo se pudesse, será que faria alguma diferença? Eram suposições irreais, impossíveis, a menos que se construísse uma máquina do tempo. O fato era que essa máquina do tempo só existia na minha mente, me fazendo imaginar como seriam os dias ao lado da pessoa que eu amei.
   Remoendo a situação, apanhei todos os objetos e os atirei de volta no fundo da gaveta e a fechei rapidamente. Não havia nada que eu pudesse fazer agora, nem nada que pudesse me arrepender a ponto de achar que a vida não merecia ser mais vivida. Era o final, esse era o meu final. Eu ainda resistia viva, carregando lembranças de um passado remoto.
   Coloquei-me de pé diante da escrivaninha, revirei os papeis desorganizados enquanto tentava esvaziar o pensamento. Atravessei o corredor rumo à cozinha em busca de uma xícara de café que me mantinha acordada durante a falta de lucidez. Caminhei rumo à estante de livros, automaticamente. A simples visão das histórias me tranquilizava enquanto o meu pensamento procurava me desesperar. Matar ele já não mais podia.
   Passei o olhos pelos velhos livros empoeirados, no topo de uma pilha desorganizada estava um pequeno livro alaranjado que chamava minha atenção. Eu bem sabia que este livro tinha me transtornado o suficiente para me fazer não esquecer de seu conteúdo. Tirei o de cima da pilha e corri os olhos pelo título "A Metamorfose". Folheei as páginas e pude ver minhas anotações quase apagadas nos cantos da folha. Lembrei do motivo que me fez ler o livro, o mesmo que me afastou dele por tanto tempo. A indicação. Seu conteúdo me transformou secretamente. A metamorfose da minha solidão repugnante para a minha solidão imprescindível.
   Enxerguei ali minha existência, sucedida pelas minhas próprias escolhas. Escolhi amar, escolhi a solidão, a esperança vil se comparada com os sentimentos alheios. Eu não precisava voltar para o quarto, abrir a gaveta e pegar o retrato. A imagem estava clara na minha mente. Um detalhe ínfimo diante da imensidão da vida que havia percorrido até ali, uma lembrança distante de algo constantemente cravado em mim.
   O telefone tocou, levei um tempo para chegar até ele, em parte porque meu pensamento sempre fora mais rápido do que eu. Hesitei antes de puxar do gancho, para mim estava claro quem estava do outro lado da linha. Não temia, mas questionava se era o momento oportuno para atender.
   Atendi.
   A solidão vivia em mim, mas a voz do telefone me disse que não só em mim, mas vivia secretamente em todos nós. Ao saber disso não me senti mais só, mas satisfeita por saber que poderia finalmente me libertar do mal que abraçava.
    Portanto se morremos sós, uma vida solitária terá sido em vão, foi o que a voz do outro lado da linha me disse. Morri então, por não mais me sentir tão só, se a vida valia a pena eu já não mais sabia. Pensei no retrato, pensei na vida, que agora havia se tornado uma lembrança distante. Tentei corresponder aos valores que a morte estipulava, ponderar escolher viver uma vida aparentemente cheia e uma morte vazia, ou ao contrário. Anulei as demais opções, pois agora só havia um caminho a seguir.
   Era o fim da ligação, da vida, da esperança, da alegria, da angústia e da tristeza. Era o meu fim e só permaneceria as consequências de todas as minhas escolhas. Secretamente sobrevivia ali a enigmática solidão, inimiga dos incompreendidos e a paz dos conformados.



Andressa Liz