quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

A Vida Secreta da Solidão

   Vi a foto antiga do retrato e por pouco não reconheci a pessoa que ali estava, não fosse pelo sorriso e o olhar enigmático. A sordidez da imagem me trazia inquietude envolta na mais profunda melancolia. Já se passaram muitos anos da lembrança do seu rosto fronte à minha face. Avistei o envelope no fundo da gaveta onde encontrei a fotografia, hesitei em pegá-la, mas não resisti.
   Na carta estavam palavras carregadas com a mais cruel das angústias, a de saber que nada poderia ser feito para mudar a situação de uma forma efetiva. As palavras obviamente eram minhas, pois nunca as enviei. Uma lágrima furtiva pendia do meu rosto, forçando seu caminho pela minha face rumo ao chão. Eu não poderia mais voltar ao passado para fazer tudo diferente, e mesmo se pudesse, será que faria alguma diferença? Eram suposições irreais, impossíveis, a menos que se construísse uma máquina do tempo. O fato era que essa máquina do tempo só existia na minha mente, me fazendo imaginar como seriam os dias ao lado da pessoa que eu amei.
   Remoendo a situação, apanhei todos os objetos e os atirei de volta no fundo da gaveta e a fechei rapidamente. Não havia nada que eu pudesse fazer agora, nem nada que pudesse me arrepender a ponto de achar que a vida não merecia ser mais vivida. Era o final, esse era o meu final. Eu ainda resistia viva, carregando lembranças de um passado remoto.
   Coloquei-me de pé diante da escrivaninha, revirei os papeis desorganizados enquanto tentava esvaziar o pensamento. Atravessei o corredor rumo à cozinha em busca de uma xícara de café que me mantinha acordada durante a falta de lucidez. Caminhei rumo à estante de livros, automaticamente. A simples visão das histórias me tranquilizava enquanto o meu pensamento procurava me desesperar. Matar ele já não mais podia.
   Passei o olhos pelos velhos livros empoeirados, no topo de uma pilha desorganizada estava um pequeno livro alaranjado que chamava minha atenção. Eu bem sabia que este livro tinha me transtornado o suficiente para me fazer não esquecer de seu conteúdo. Tirei o de cima da pilha e corri os olhos pelo título "A Metamorfose". Folheei as páginas e pude ver minhas anotações quase apagadas nos cantos da folha. Lembrei do motivo que me fez ler o livro, o mesmo que me afastou dele por tanto tempo. A indicação. Seu conteúdo me transformou secretamente. A metamorfose da minha solidão repugnante para a minha solidão imprescindível.
   Enxerguei ali minha existência, sucedida pelas minhas próprias escolhas. Escolhi amar, escolhi a solidão, a esperança vil se comparada com os sentimentos alheios. Eu não precisava voltar para o quarto, abrir a gaveta e pegar o retrato. A imagem estava clara na minha mente. Um detalhe ínfimo diante da imensidão da vida que havia percorrido até ali, uma lembrança distante de algo constantemente cravado em mim.
   O telefone tocou, levei um tempo para chegar até ele, em parte porque meu pensamento sempre fora mais rápido do que eu. Hesitei antes de puxar do gancho, para mim estava claro quem estava do outro lado da linha. Não temia, mas questionava se era o momento oportuno para atender.
   Atendi.
   A solidão vivia em mim, mas a voz do telefone me disse que não só em mim, mas vivia secretamente em todos nós. Ao saber disso não me senti mais só, mas satisfeita por saber que poderia finalmente me libertar do mal que abraçava.
    Portanto se morremos sós, uma vida solitária terá sido em vão, foi o que a voz do outro lado da linha me disse. Morri então, por não mais me sentir tão só, se a vida valia a pena eu já não mais sabia. Pensei no retrato, pensei na vida, que agora havia se tornado uma lembrança distante. Tentei corresponder aos valores que a morte estipulava, ponderar escolher viver uma vida aparentemente cheia e uma morte vazia, ou ao contrário. Anulei as demais opções, pois agora só havia um caminho a seguir.
   Era o fim da ligação, da vida, da esperança, da alegria, da angústia e da tristeza. Era o meu fim e só permaneceria as consequências de todas as minhas escolhas. Secretamente sobrevivia ali a enigmática solidão, inimiga dos incompreendidos e a paz dos conformados.



Andressa Liz

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