Juca adorava a sua pequena cabra e fazia todo o esforço para alimentá-la. Era dela que tirava o sustento de toda a família e ajudava o resto da vila a sobreviver. Trocava o leite por feijão, arroz e farinha, com sorte conseguia semana ou outra uma ave magra pro jantar. No mais, ninguém da vila costumava comer todo dia, ou pagar por comida. Ele já havia salvado a vida de muita gente à beira da morte, tudo graças a sua pequena cabra e o queijo que se podia fazer do seu leite. Era pouco, mas o pouco que tinha era muito.
Pra esquecer a fome, Juca se sentava nos finais de tarde debaixo da árvore retorcida na frente da casinha e escutava os causos que a velha tia contava com uma expressão pesarosa e enlouquecida. A tia de Juca era conhecida pelos outros na vila como velha louca, pois falava coisas tenebrosas e aparentemente sem sentido, havia rumores de que a velha era bruxa, mas Juca sabia que não passava de conversa fiada que batia de casa em casa na pequena vila. A tia era de fato meio dissimulada, mas Juca gostava de ouvir suas histórias e por vezes se questionava se aquilo não poderia ser real. As histórias de lobisomem, chupa-cabra e capeta não o assustavam nenhum pouco. A velha tia falava dos poderes mágicos da besta e Juca imaginava se poderia um dia saber se isso era real, pensava no inferno que a tia descrevia e imagina um lugar parecido com o sertão. Juca não mais rezava, pois nada nunca mudava, não se preocupava em ir pro inferno já que não conseguia pensar em um lugar pior do que o que estava. Ficava imaginando o que poderia fazer para que todo o sofrimento acabasse.
Conforme os dias se passavam e o verão quente se aproximava a comida ia ficando mais escassa e a temperatura muito mais difícil de suportar. Uns morriam de exaustão, os corpos fracos de inanição. Juca ainda conseguia sustentar a família com a sua cabra que sobrevivia às dificuldades da vida sertaneja e quando podia ajudava os demais. Juca se sentia mal em ver os que tinham ainda menos do que ele sofrerem até a morte lenta chegar.
Um dia lembrando das histórias que ouvira da tia, decidiu ir até a encruzilhada de madrugada. Esperando alguma criatura mágica aparecer e quem sabe ela sentiria tanta pena de sua história que resolveria ajudar. Ficou lá esperando, a noite quente, a lua grande no céu estrelado, nenhuma brisa e silêncio absoluto. Subitamente uma sombra negra surgiu na frente de Juca. O menino levou um susto, mas logo abriu um sorriso desdentado. A criatura ficou parada diante dele estranhando a reação contraditória do garoto.
- As pessoas não costumam sorrir ao me ver
- Eu sorri porque minha tia num é louca sinhô, ela tava certa quando disse que existia.
- Tu sabe quem eu sou, garoto?
O garoto observou a figura empalidecida, os olhos negros profundos e os chifres protuberantes na cabeça do homem envolto em escuridão.
- É o sinhô que vai ajudar nóis.
O homem riu.
- Ajudar, garoto? Eu não ajudo ninguém.
A esperança do rosto de Juca desapareceu, o olhar agora distante, consternado.
- Então o sinhô num pode fazer nada pra nóis né...
- Já rezou hoje menino? - perguntou o homem rindo ainda mais alto, os olhos enigmáticos.
- Não sinhô, eu já num rezo faz tempo. Antes eu rezava todo dia mas até hoje a gente nunca teve resposta. Se o sinhô lá de cima num pode ajudá nóis, pensei que o sinhô pudesse ajudá.
O homem abriu um sorriso grande
- Talvez eu possa fazer algo por ti
Juca abriu novamente o sorriso banguela. O homem continuou
- Mas tem um preço.
Juca fechou o sorriso, apreensivo
- Mas nóis num tem dinheiro nenhum, nóis num sabe muito sobre dinheiro, é coisa dos homi que aparece vez ou outra pra deixar um pouco de comida, numas carroça de metal grande que carrega mais ar que coisa pra ajudar nóis. Eles num divide o que tem com nóis e temos que se virá.
O homem continuou sorrindo, enigmático
- Eu não quero dinheiro, menino, dinheiro não me serve. Eis aqui minha proposta então. Tu abre mão do que for mais importante pra ti e eu te mostrarei o futuro.
Abrir mão do que era mas importante para ele. Juca apenas conseguia pensar em sua cabra. Com as últimas esperanças reunidas, ainda que hesitante depositou sua confiança no homem, esperando que o futuro pudesse lhe mostrar alguma solução. O Menino correu rumo a casinha, desamarrou a cabra e a levou ao homem.
O homem riu ainda mais alto e mostrou para Juca o que ele havia pagado para ver. Juca viu a vila vazia, crânios espalhados pelo chão, alguns poucos corpos se contorcendo, lutando contra os urubus esfomeados, tentando resistir à morte, outros ávidos para que ela chegasse logo. Juca esperançoso tinha acabado de receber um golpe do destino que destruiu toda a esperança que ainda restava. Quando o garoto voltou novamente para a encruzilhada disse indignado para a figura humana escura e com chifres
- Mas isso num é solução
- Eu nunca disse que fosse, garoto. Tu aceitou o acordo que eu tinha a oferecer e pagou para ver o futuro, eu te mostrei. Isso é tudo.
- Mas num é justo, eu dei pro sinhô tudo que eu tinha.
- Quando não tiver mais ninguém em quem confiar, ainda assim não confie no diabo.
Uma risada precedeu seu sumiço, pairava um cheiro desagradável no ar. Juca não podia acreditar que vendera sua preciosa cabra por um preço tão barato. Tinha vendido sua única real esperança em troca de nada.
Conforme os dias passavam, Juca viu a morte dos irmãos, dos pais e da velha tia. Sem ter o que comer todos na vila estavam morrendo, ainda mais rápido sem o leite da cabra que os sustentava. Juca não tinha mais o que fazer, padecia embaixo da velha árvore seca sem forças para se mexer. Imóvel, podia ver as feridas assustadoras do seu corpo e a fome que açoitava seu estômago. Delirava de sede sob o sol escaldante enquanto os urubus se agrupavam no céu esperando que sua hora chegasse. Juca também esperava, não pensava nem em céu, nem em inferno, apenas queria sair dali o mais rápido possível e se livrar da dor e do sofrimento.
Andressa Liz
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